sexta-feira, 9 de outubro de 2015

Crónica de uma visita

Osório tem 98 anos. Conserva o espírito e a vontade do tempo em que, como diz, as pernas não o deixavam ficar mal. Olinda, um pouco mais jovem, na casa dos 70 e muitos, é mais tranquila. Aprendeu, com o tempo, a valorizar o momento e naquele dia havia música, festa e abraços no Lar dos Idosos - tão raros eram os que agora recebia! 
Prostrada na cadeira de rodas, Albertina, olhava tudo cabisbaixa, com uma lágrima ao canto do olho. Não dizia nada, olhava.
Ana era diferente dos outros, magra, pernas ligeiramente arqueadas metidas numas calças de malha preta, as leggings como hoje se diz, singlete de malha preta ajustada ao peito pequeno e empinado qual proa de uma caravela, batia palmas e dançava, dançava e falava e contava como a vida era linda em Angola. Sabia dançar Kuduru e Kizomba mas ali não havia quem as quisesse dançar apesar de ela se propor a ensinar. Trazia no olhar paisagens de outros lugares e alegrava-se quando a conversa seguia por cima das ondas do mar até às praias quentes e às terras férteis da sua querida África. Mil e uma histórias tinha para contar… e ria-se, a pequena Sherazade.
António parecia um pequeno balão com pernas, rosto redondo e afável, gostava de dançar e de ainda o poder fazer com uma mulher, divertida e viva, mais ou menos assim como a Ana.
Às horas mortas de alguns contrapunham outros a morte às horas e tentavam contrariar o tempo, que apesar do esforço, inexoravelmente, acrescentava mais uma hora, mais um dia, mais uma ruga, mais uma camada de dores e outra de receios e mais outra de solidão… As manhãs eram aguardadas mais do que o pequeno-almoço ou a presença das solícitas assistentes. As noites eram medonhas, traziam o cansaço, o desalento, a dor de quem já teve, de quem já pode, de quem já dançou e cantou, de quem já amou, ganhou e perdeu. Na vida o que se ganha, perde-se com o tempo ou então, se bem guardado, renova-se, torna-se pertença de outro e já não nosso - em boa verdade, perdemo-lo sempre.
Á flor da pele pressinto a solidão que se agiganta e o tempo que se escoa por entre os fios do cabelo encanecido. O que fazemos? Construímos edifícios de cores doces, confortáveis. Erguemos muros para nos protegermos ou para nos isolarmos? Tememos contaminar ou ser contaminados? 
De uma montanha a outra, quando um vale profundo as separa o homem costuma construir pontes ou passadiços de madeira e corda ou arame, permitindo assim a passagem para o outro lado. A velhice é semelhante a um passadiço, construção frágil e provisória que tenuemente une a variável tripartida da existência humana: passado-presente-futuro.


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