segunda-feira, 12 de outubro de 2015

Maria, minha mãe!

Vejo-a quase todos os dias. Tem mais de oitenta anos, cabelos encanecidos, olhos amendoados, doces como o mel e um sorriso largo espraia-se no rosto quando me vê. Os sulcos na sua face contam histórias a quem as queira desvendar: histórias de trabalho árduo, frente às máquinas de um tempo escravo, sem tempo para ser criança, sem tempo para ser feliz.
Conta-me, às vezes, que a vida agora é um regalo: mesa farta; barriga cheia; caixotes de lixo a abarrotar de restos…de pão…de fruta, e nessas alturas uma lágrima teimosa vem bailar nos seus olhos doces e magoados.
Passou fome. No tempo da sua meninice, frequentou a escola e era a professora que, à socapa da sua própria família, lhes levava restos da broa cozida lá em casa. Ela escondia aqueles “nacos de vida” no pequeno aventalinho e corria como o vento para casa para entregar à mãe aquele tesouro, e à noite, à mistura com o caldo, saboreavam lentamente o bocadinho de pão.
A professora há muito que morrera. As colegas da escola (um luxo para a época!) foram entretanto adormecendo e resta-lhe a memória dos sorrisos, das lágrimas, do medo, do frio e da fome tantas vezes  hóspede nas suas humildes casas, com chão de terra e tabiques de madeira a separar o quarto dos pais, do quarto onde os filhos se amontoavam uns após outros. Hoje, diz-me ela, não nascem crianças e há tanta coisa para lhes dar; Não querem crianças porque não sabem o que o futuro lhes reserva e o dinheiro é sempre pouco! No entanto a vida continua e tem de continuar, apesar da crise, apesar do medo!
Olho-a e o meu coração quase me salta pela boca, porque a sua ternura, a sua tenacidade não tem fronteiras, não tem limites!
Vive com um dos seus quinze filhos, acompanha o crescimento dos netos e abençoa-os com o seu carinho todos os dias. Nunca está só. Normalmente encontro-a, no meio da horta, com a enxada na mão a cavar pequenos sulcos na terra, onde delicadamente deposita alface, couve, batata ou então tratando e colhendo flores. Lá, na sua humilde casinha, faz tudo ainda, desde a comida à limpeza dos pequenos quartos e salas outrora repletos de gritos e risos, de sonhos e deceções, de abraços e de lágrimas.
Às vezes pergunto-lhe se gostava de frequentar um lar e ela, olha-me meigamente e diz-me que isso seria como morrer, seria como aceitar a prisão e deixar de ser livre.
Quando leio nos jornais que em solidão e total abandono apareceu morto mais um idoso, não consigo evitar de pensar nela e anseio por a ver no dia seguinte. É como se o ar que respiro ficasse de repente sufocante e eu necessitasse de abrir uma janela para que o ar se renove, todos os dias.
É feliz, diz-me ela.
Ri-se com frequência à conversa com os netos e torna-se menina outra vez quando brinca com eles.
Gosta de contar histórias, histórias de príncipes e princesas e os netos e filhos deliciam-se na sua companhia.
Nada mais quer da vida que não seja o bem-estar dos seus entes queridos e um dia, quando adormecer, acredita que Deus a há-de recompensar !  A religião cristã continua, ainda hoje, a ser o suporte existencial de muitos seres humanos e este acreditar compensa a sua tristeza.
É pobre, todavia tem sempre alguma coisa para partilhar com os vizinhos e a porta flanqueia-a frequentemente para conversar e para ouvir! Vive, é claro, numa aldeia, naquela aldeia que a viu nascer, crescer, parir e agora a observa na lentidão dos seus dias.
Ela é Maria da Conceição, minha mãe!

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