sexta-feira, 25 de dezembro de 2015

Quase Natal



No fundo do bolso
as três moedas
que lhe restam.
Ainda vem longe
o final do mês!
No bolso interior do casaco
gasto, borbotado tem o passe,
guardado junto ao corpo
magro e esguio.
Tem forma de regressar
se não o perder.
Tem forma de o perder
Se não o guardar.
Olha as montras
enquanto passeia as horas.
Anjos de caco, anafados,
sorridentes,
da cor do oiro e da alvura da neve
anunciam-lhe o quase nada,
no silêncio da tarde breve.
Longe, espera uma mesa vazia
rodeada de bocas,
encimada por dois olhos brandos,
esquivos,
como os abraços
que se escondem no vazio da amargura
que tortura.
Aperta as moedas
Que hão-de chegar para  pães
secos. Dois ao jantar e dois ao levantar
divididos por quatro
muito devagar…
Para si não, diz que não lhe apetece.
De repente, uma rena,
vinda do nada
aparece
imóvel, hirta, embalsamada
junto a uma cama que se vende,
exposta na montra decorada
em tons dourados e rubros
E mais além, pinheiros de fantasia
brancos, com bolas azuis
de um azul fundo que brilha
quando encontra o azul claro dos seus olhos.
Chora!
Deixa cair, embrulhada de vergonha,
a lágrima que escondia
como as duas moedas
no calor das suas mãos.
Estremece!
É quase Natal!
E não parece…

quinta-feira, 19 de novembro de 2015

Só!

Olho-a e penso:
Quando voltará a cair
a lágrima, teimosa,
suspensa no canto do olho?
A voz embargada
recortada nas palavras
acesas e pardas
tende a sumir-se, como a dor,
para um qualquer recanto
onde, escondida, soçobra!
Resta-lhe a memória
de um lar pleno e repleto
onde falava mais alto
o afeto,
para onde fugia
nos dias vazios e pardos.
Ficou-lhe a lembrança
das rosas e dos pessegueiros
luminosos e amplos,
do tempo da sua infância
Ficou-lhe o sabor dos abrunhos
o toque dos cardos
e a desesperança.
Que sina!
Que desamor!
Solidão e lágrimas

Saudade e dor!

domingo, 8 de novembro de 2015

Crónica do tempo



Caminha, a passo lento, o tempo na aldeia da minha infância. 
Debruça-se nos ombros dos antecipadamente reformados, dos dispensados de serviço e come os ossos aos velhos de olhar parado, fixo no horizonte sempre igual, sempre verde, ostensivamente verde e fresco!

Vive-se mais tempo, mas é um tempo de temor, às vezes de remorsos, de males ruins, que o bem dos últimos dias não eleva, não esquece, não perdoa. Vive-se e morre-se na aldeia da minha infância, como na minha infância.

Morre-se devagar ao sabor dos dias prenhes de fartura, engordados pela miséria e vestindo o traje habitual: esgares de dor, laivos de riso, medo, incredulidade e, por vezes (muitas), esperança. Aquela que ficou, depois de todos os males ocorrerem por ordem dos deuses, ainda permanece, sendo o último reduto da humanidade.

É a ela que todos se agarram na hora de partir e, na verdade, é vã, não dá respostas, nem conselhos, nem procedimentos a tomar, nem a salvaguarda dos que ficam, nem a certeza dos lugares do outro lado do Estige.

Aqui, hoje, existe a certeza de um tempo lasso, frio e quente, húmido e seco que esvazia corpos que, ontem, foram belos e perfeitos e os torna cadáveres ambulantes à espera da sua vez de passagem e esperam ter o óbolo necessário para dar ao barqueiro.

Amanhã é só mais um passo, mais um arquear do peito, um sorvo de ar que se esgota dia a dia no caudal virulento da pressa das máquinas.

cores da minha cidade no outono





Percepção





Olho e não vejo

O que outrora via



Oiço e o que oiço,

Lembra-me  como outrora era



Há demasiado ruído em volta

Do silêncio de outrora



Há de tudo demasiado

E demasiada falta de tudo



No rosto dos que passam

Brilham centelhas de angústia



Nos gestos dos que ficam

Desmaiam anseios no olhar

quarta-feira, 14 de outubro de 2015

Uma viagem rumo ao sul...

Igreja de Vera Cruz de Marmelar  (Portel)

Aquele Agosto estava muito complicado: muito trabalho, muita azáfama, muita pressa, vontade de chegar rapidamente e a estrada, interminável, alongava-se a perder de vista sob o sol tórrido.
A água esgotava-se dentro da viatura, esconsa, velha, sem ar condicionado, onde os “oito artistas” seguiam enlatados e emparelhados com as violas surdas, o violino emudecido, os bombos calados e a necessidade de chegar!
A expetativa era muita! Vidigueira ficava para trás, faltava agora Vera Cruz de Marmelar; mais uns quantos quilómetros e pronto! Num pequeno montículo de terra semelhante a um soluço suspenso no peito da terra-mãe, lá estava ela: branquinha, pequena, mirando-os risonha, de longe, à espera. Mais perto, já dentro dela, víam-na em toda a sua plenitude. Três ruas a constituíam: a mais direita levava à igreja onde estava o palco, a céu aberto; nas outras duas ruas aninhavam-se as casas, térreas, vestidas de blusa e saia branca com uma barra azul rente ao chão poeirento e irregular.
Ao pé da igreja encontrava-se a taberna do Ti João.
Sequiosos e cansados entraram na taberna e logo foram seguidos por uma dúzia de olhos inquisidores. São estranhos à aldeia! Pensaram.
Encostados ao balcão pediram as bebidas: - Duas cervejas fresquinhas se faz favor, pediram as duas mulheres do grupo. Ti João pareceu não ouvir e elas repetiram o pedido. De novo a demora. Reformularam pela terceira vez o pedido em tom um pouco mais alto e desta feita, perante a igual insistência dos restantes elementos do grupo, lá foram servidas.
Aperceberam-se do constrangimento mas nada disseram.
Quando abandonaram a taberna, sentada na soleira da porta de uma das casas vizinhas, uma mulher, vestida de negro, olhava-os sorrindo.
- Boa tarde! Saudaram.
- Boa tarde! Respondeu-lhes.
O tom amistoso da sua voz levou-os a ficar ali, à sombra, a conversar com Ti Aurora, assim se chamava ela, durante um bom bocado. O Sol mordia-lhes a pele e quando respiravam, lufadas de ar, saturado de calor, entrava-lhes pelas narinas.  
Aproveitando a oportunidade contaram  à Ti Aurora o que tinha acontecido na taberna com o pedido da cerveja para as duas moças e ela riu-se e disse:
- Em Vera Cruz as mulheres não entram na taberna e nunca bebem em público bebidas alcoólicas. As que o fazem são mulheres da sorte, por isso o espanto dos homens e a recusa em servi-las. Costumes! Bons ou maus são os nossos, não nos levem a mal por isso, vão ver que logo esquecem o que aconteceu.
Continuaram a conversar durante mais um pouco e quando o sol partiu para outros horizontes começaram a trabalhar o espetáculo.
À noite sob um céu límpido e profusamente estrelado, na companhia do Ti João, da Ti’Aurora e de tantos outros habitantes de Vera Cruz e das aldeias vizinhas o espetáculo aconteceu e toda a viagem fez sentido.
De vez em quando regressam lá, em pensamento, e revêm o pequeno povoado bordado a azul, branco e vermelho, num fundo amarelo ouro, onde na planura mora a solidão e tem gosto a amoras silvestres.

"(...) Ai, Alentejo, quem te amou não te esqueceu..."
In Toada ao Alentejo, cantada por Sebastião Antunes-

segunda-feira, 12 de outubro de 2015

Maria, minha mãe!

Vejo-a quase todos os dias. Tem mais de oitenta anos, cabelos encanecidos, olhos amendoados, doces como o mel e um sorriso largo espraia-se no rosto quando me vê. Os sulcos na sua face contam histórias a quem as queira desvendar: histórias de trabalho árduo, frente às máquinas de um tempo escravo, sem tempo para ser criança, sem tempo para ser feliz.
Conta-me, às vezes, que a vida agora é um regalo: mesa farta; barriga cheia; caixotes de lixo a abarrotar de restos…de pão…de fruta, e nessas alturas uma lágrima teimosa vem bailar nos seus olhos doces e magoados.
Passou fome. No tempo da sua meninice, frequentou a escola e era a professora que, à socapa da sua própria família, lhes levava restos da broa cozida lá em casa. Ela escondia aqueles “nacos de vida” no pequeno aventalinho e corria como o vento para casa para entregar à mãe aquele tesouro, e à noite, à mistura com o caldo, saboreavam lentamente o bocadinho de pão.
A professora há muito que morrera. As colegas da escola (um luxo para a época!) foram entretanto adormecendo e resta-lhe a memória dos sorrisos, das lágrimas, do medo, do frio e da fome tantas vezes  hóspede nas suas humildes casas, com chão de terra e tabiques de madeira a separar o quarto dos pais, do quarto onde os filhos se amontoavam uns após outros. Hoje, diz-me ela, não nascem crianças e há tanta coisa para lhes dar; Não querem crianças porque não sabem o que o futuro lhes reserva e o dinheiro é sempre pouco! No entanto a vida continua e tem de continuar, apesar da crise, apesar do medo!
Olho-a e o meu coração quase me salta pela boca, porque a sua ternura, a sua tenacidade não tem fronteiras, não tem limites!
Vive com um dos seus quinze filhos, acompanha o crescimento dos netos e abençoa-os com o seu carinho todos os dias. Nunca está só. Normalmente encontro-a, no meio da horta, com a enxada na mão a cavar pequenos sulcos na terra, onde delicadamente deposita alface, couve, batata ou então tratando e colhendo flores. Lá, na sua humilde casinha, faz tudo ainda, desde a comida à limpeza dos pequenos quartos e salas outrora repletos de gritos e risos, de sonhos e deceções, de abraços e de lágrimas.
Às vezes pergunto-lhe se gostava de frequentar um lar e ela, olha-me meigamente e diz-me que isso seria como morrer, seria como aceitar a prisão e deixar de ser livre.
Quando leio nos jornais que em solidão e total abandono apareceu morto mais um idoso, não consigo evitar de pensar nela e anseio por a ver no dia seguinte. É como se o ar que respiro ficasse de repente sufocante e eu necessitasse de abrir uma janela para que o ar se renove, todos os dias.
É feliz, diz-me ela.
Ri-se com frequência à conversa com os netos e torna-se menina outra vez quando brinca com eles.
Gosta de contar histórias, histórias de príncipes e princesas e os netos e filhos deliciam-se na sua companhia.
Nada mais quer da vida que não seja o bem-estar dos seus entes queridos e um dia, quando adormecer, acredita que Deus a há-de recompensar !  A religião cristã continua, ainda hoje, a ser o suporte existencial de muitos seres humanos e este acreditar compensa a sua tristeza.
É pobre, todavia tem sempre alguma coisa para partilhar com os vizinhos e a porta flanqueia-a frequentemente para conversar e para ouvir! Vive, é claro, numa aldeia, naquela aldeia que a viu nascer, crescer, parir e agora a observa na lentidão dos seus dias.
Ela é Maria da Conceição, minha mãe!

sexta-feira, 9 de outubro de 2015

Crónica de uma visita

Osório tem 98 anos. Conserva o espírito e a vontade do tempo em que, como diz, as pernas não o deixavam ficar mal. Olinda, um pouco mais jovem, na casa dos 70 e muitos, é mais tranquila. Aprendeu, com o tempo, a valorizar o momento e naquele dia havia música, festa e abraços no Lar dos Idosos - tão raros eram os que agora recebia! 
Prostrada na cadeira de rodas, Albertina, olhava tudo cabisbaixa, com uma lágrima ao canto do olho. Não dizia nada, olhava.
Ana era diferente dos outros, magra, pernas ligeiramente arqueadas metidas numas calças de malha preta, as leggings como hoje se diz, singlete de malha preta ajustada ao peito pequeno e empinado qual proa de uma caravela, batia palmas e dançava, dançava e falava e contava como a vida era linda em Angola. Sabia dançar Kuduru e Kizomba mas ali não havia quem as quisesse dançar apesar de ela se propor a ensinar. Trazia no olhar paisagens de outros lugares e alegrava-se quando a conversa seguia por cima das ondas do mar até às praias quentes e às terras férteis da sua querida África. Mil e uma histórias tinha para contar… e ria-se, a pequena Sherazade.
António parecia um pequeno balão com pernas, rosto redondo e afável, gostava de dançar e de ainda o poder fazer com uma mulher, divertida e viva, mais ou menos assim como a Ana.
Às horas mortas de alguns contrapunham outros a morte às horas e tentavam contrariar o tempo, que apesar do esforço, inexoravelmente, acrescentava mais uma hora, mais um dia, mais uma ruga, mais uma camada de dores e outra de receios e mais outra de solidão… As manhãs eram aguardadas mais do que o pequeno-almoço ou a presença das solícitas assistentes. As noites eram medonhas, traziam o cansaço, o desalento, a dor de quem já teve, de quem já pode, de quem já dançou e cantou, de quem já amou, ganhou e perdeu. Na vida o que se ganha, perde-se com o tempo ou então, se bem guardado, renova-se, torna-se pertença de outro e já não nosso - em boa verdade, perdemo-lo sempre.
Á flor da pele pressinto a solidão que se agiganta e o tempo que se escoa por entre os fios do cabelo encanecido. O que fazemos? Construímos edifícios de cores doces, confortáveis. Erguemos muros para nos protegermos ou para nos isolarmos? Tememos contaminar ou ser contaminados? 
De uma montanha a outra, quando um vale profundo as separa o homem costuma construir pontes ou passadiços de madeira e corda ou arame, permitindo assim a passagem para o outro lado. A velhice é semelhante a um passadiço, construção frágil e provisória que tenuemente une a variável tripartida da existência humana: passado-presente-futuro.


terça-feira, 15 de setembro de 2015

Outono



 O Outono chegou mais uma vez
E na esteira do seu regresso
tombam as folhas
As árvores
vão-se despindo, coradas,
de um vigor repentinamente amarelecido.

Tinge-se o horizonte
E da terra surge o clamor do tempo,
da dádiva cumprida
embrulhada, agora, pela brisa
soterrada, agora, pelo frio.

Na Ágora reúnem-se os velhos
abraçados pelo lusco-fusco da tarde
beijados ao de leve pelo vento
de mais um outono
antes do esquecimento.